Há seis anos na fila do SUS, Daniela Andrade entrou com uma ação na Justiça para que o plano de saúde cubra sua cirurgia
Daniela Andrade é programadora, ativista, tem 37 anos e está há pelo menos seis aguardando por uma cirurgia de transgenitalização.
E se ela continuar esperando o atendimento pela rede pública de saúde,
nada indica que conseguirá se submeter ao procedimento nos próximos
quatro anos.
Segundo dados da Associação de Travestis, Mulheres Transexuais e Homens Trans - LGBT do Estado de São Paulo (Amapo-SP), a fila para obter procedimentos cirúrgicos, o último estágio do chamado "processo transexualizador" do Sistema Único de Saúde (SUS), é de dez anos. "A rede até teve algumas expansões recentes, mas a dificuldade persiste e a cirurgia é uma necessidade", lembra Nicolle Mahier, presidenta da Amapo.
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Desde 2008, o SUS oferece atendimento cirúrgico e ambulatorial para pessoas que necessitam do atendimento para redesignação sexual. Em 2009, Daniela iniciou seu atendimento por meio da Secretaria estadual de Saúde de São Paulo, que mantém o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids.
Falta de acolhimento
O processo transexualizador está disponível no SUS há quase 20 anos, mas é impossível obter números precisos sobre a demanda pelo atendimento e tempo de espera. Hoje, em todo o País, há apenas cinco hospitais que oferecem os procedimentos cirúrgicos e ambulatoriais e há outros quatro ambulatórios especializados. E, embora seja o SUS o órgão responsável por esses atendimentos, o sistema não conta com dados sobre a fila de espera nem pode medir se há um cruzamento eficiente entre a fila única nacional e as de cada um dos estados.
De acordo com Inês Gadelha, médica e chefe de gabinete da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, os hospitais credenciados têm suas próprias filas internas e normalmente o indivíduo está em mais de uma, o que não é bom, porque dá impressão de um problema ou de uma fila muito maior do que a que existe.
"A fila se forma pela baixa oferta de serviços. E por que existe uma baixa oferta? Porque os hospitais não demonstram interesse em se habilitar", afirma Inês. "Mesmo as filas de cada hospital podem ser superestimadas, porque pode ter pessoas inscritas em mais de uma fila", completa. Superestimada ou não, a realidade é que transexuais não conseguem se submeter à cirurgia.
Entre agosto de 2008 a setembro de 2017 foram realizados 428 procedimentos hospitalares e 21.935 procedimentos ambulatoriais relacionados ao processo transexualizador, incluindo as cirurgias de transgenitalização. "Os hospitais que são habilitados desde o começo para procedimentos cirúrgicos são os mesmos cinco até hoje", lembra Inês.
saiu: www.cartacapital.com.br
Segundo dados da Associação de Travestis, Mulheres Transexuais e Homens Trans - LGBT do Estado de São Paulo (Amapo-SP), a fila para obter procedimentos cirúrgicos, o último estágio do chamado "processo transexualizador" do Sistema Único de Saúde (SUS), é de dez anos. "A rede até teve algumas expansões recentes, mas a dificuldade persiste e a cirurgia é uma necessidade", lembra Nicolle Mahier, presidenta da Amapo.
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Desde 2008, o SUS oferece atendimento cirúrgico e ambulatorial para pessoas que necessitam do atendimento para redesignação sexual. Em 2009, Daniela iniciou seu atendimento por meio da Secretaria estadual de Saúde de São Paulo, que mantém o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids.
"Nessa
época eu já me hormonizava por conta própria, o que é uma realidade de
11 em cada 10 pessoas trans no Brasil", conta. Dois anos depois, havia
completado o protocolo ambulatorial – que inclui atendimento com
endocrinologista, psicólogo, psiquiatra e assistente social – e foi
considerada apta para se candidatar à cirurgia. Desde então, aguarda
numa fila na qual não faz ideia de sua colocação.
"É
cruel: se você precisa de um transplante, sabe em que lugar da fila
está, sabe qual é a probabilidade daquela cirurgia ser realizada. Grande
parte da população acredita que a cirurgia de transgenitalização é um
luxo. Estou nesse processo desde 2009. Será que uma pessoa se submeteria
a uma cirurgia tão invasiva, que vai revirar seu aparelho genital, por
um capricho?", questiona.
O caminho para a cirurgia é
longo e começa muito antes da fila. Para os procedimentos ambulatoriais,
o SUS aceita pacientes a partir dos 18 anos. Para se tornar apta, a
pessoa transexual deve se submeter ao tratamento ambulatorial por pelo
menos dois anos, e a idade mínima exigida para as cirurgias é 21 anos.
O SUS oferece cirurgias de
transgenitalização; de mastectomia (retirada de mama); plástica mamária
reconstrutiva (incluindo próteses de silicone); e cirurgia de
tireoplastia (troca de timbre de voz). Mas, com uma década de fila, é
praticamente impossível que uma pessoa transexual adeque seu corpo ao
seu gênero antes dos 31 anos.
E é preciso manter o vínculo ao sistema para continuar na fila.
Daniela passa por atendimento desde 2009 apesar de já estar apta à
cirurgia. Isso contribui para inchar o sistema.Falta de acolhimento
Apesar de ter conseguido o laudo
que autoriza a cirurgia no prazo mínimo exigido, de dois anos, o
caminho de Daniela no sistema público de saúde foi bastante conturbado.
Mesmo atendida em um ambulatório especializado, sofreu com a falta de
empatia e acolhimento dos profissionais. Uma psicóloga chegou a sugerir
que procurasse atendimento particular. Com o plano de saúde, completou
essa parte do protocolo fora do ambulatório.
Atualmente, Daniela aguarda há quase um ano por um consulta com um endocrinologista. "A
última consulta foi em março, a endocrinologista disse que só teria
agenda em novembro. Estive no ambulatório na data e me disseram que ela
tinha saído. Preciso passar em janeiro ou fevereiro para ver em que data
eles terão para me atender", conta.
O
acompanhamento hormonal deve ser feito trimestralmente. "É bom frisar:
às vezes a gente fala 'ah, tem o ambulatório em São Paulo' e parece que
todos os problemas estão resolvidos. Mas esse atendimento é extremamente
precarizado", critica.
A
mineira Luiza Valentim, hoje com 27 anos, moradora da região da Serra
do Cipó, a 100 quilômetros de Belo Horizonte, enfrentou uma verdadeira
saga em busca de atendimento. O estado não conta, nem mesmo na capital,
com um ambulatório especializado.
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Ela
teve um lance de sorte, no começo de 2013, quando buscou ajuda. "O
primeiro contato que eu tive foi no posto de saúde. Tive a sorte de
encontrar, logo no primeiro atendimento, uma psicóloga mais sensível e
mais aberta. Conforme
foi acontecendo a terapia, ela foi se capacitando, procurando saber
mais sobre o assunto. Para ela também era uma coisa nova, pois nunca
tinha atendido um caso assim", conta Luiza, que chegou ao atendimento
ainda sem clareza de sua identidade de gênero. O acolhimento, no
entanto, parou por aí.
"Quando
eu comecei realmente a decidir ir para a transição hormonal e me
encaminhar para a cirurgia, foi onde encontrei as principais barreiras".
Luiza conta que o trabalho com a psicóloga foi fundamental para ela
conseguir se soltar, agir naturalmente, mas ao buscar o encaminhamento
para o endocrinologista as coisas de complicaram.
Sem
contar com o atendimento multidisciplinar do processo transexualizador
em sua região, era difícil até mesmo saber em que portas bater. "Eu tive
que realmente pedir para as pessoas me atenderem. Eu
já estava conseguindo me soltar, conseguia conversar bem com meus pais
sobre a situação, já no momento de impor a minha identidade. Eu
precisava desse tratamento hormonal", relembra.
Na
primeira consulta, na rede pública de Belo Horizonte, para onde teve
que se deslocar, ouviu do médico que ele "estava lá para atender outro
tipo de pessoa". Segundo Luiza, o papo era sempre era esse, inclusive
quando buscou a rede particular. Chegou a pagar uma consulta em que não
foi atendida.
Experiência semelhante da vivida por Daniela, que procurou por cinco endocrinologistas pelo
plano de saúde sem conseguir o atendimento, que só veio no ambulatório
especializado. "Todos disseram que não tinham conhecimento para lidar
com o assunto", resume.
Sem laboratório especializado, Luiza teve ainda de
garimpar atendimento psiquiátrico e com assistente social. O primeiro,
só obteve na rede particular. O segundo, só depois de muita argumentação
em órgãos públicos pelos municípios da região.
Com todos os laudos nas mãos, o balde de água fria:
Luiza foi informada que para a cirurgia ela teria de realizar todo o
processo novamente em um ambulatório vinculado a uma das apenas cinco
unidades hospitalares do País que realizam a cirurgia de
transgenitalização. "Foi deixado claro pela
rede pública: não há o processo transexualizador na região e se eu
quisesse fazer essa cirurgia pelo SUS eu teria que ir para o Rio Grande
do Sul, ou Goiás, ou Pernambuco, ou São Paulo, ou Rio de Janeiro e dar a
entrada no meu processo transexualizador. E eu já tinha feito tudo",
desabafa.
Saída paga
"Numa certa fase veio a necessidade de tirar aquele órgão de mim. Porque veio também a transfobia
quando eu assumi minha identidade real e a vontade era tirar aquele
órgão de mim eu mesma. Eu já estava chegando numa situação muito
complicada, estava suprimindo muito o órgão, com início de gangrena",
relata Luiza.
Natural
da periferia de Belo Horizonte, sua família encontrou na Serra do Cipó
meios de melhorar de vida e fazer uma reserva. Diante do desespero da
filha, a família decidiu vender um terreno, a tal reserva, para levantar
os 40 mil reais necessários para a cirurgia, a recuperação e a estadia,
com a mãe, no Rio de Janeiro, onde passou pelo procedimento."Eu cheguei num ponto que realmente eles viram a necessidade", lembra.
Diante
da fila sem transparência que parece nunca andar, Daniela também espera
que sua cirurgia possa vir da rede privada. De origem humilde, ela
agora conta com o namorado advogado que entrou com uma ação na Justiça
para obrigar o plano de saúde a arcar com as despesas da cirurgia. "Eu
preciso fazer a cirurgia. Se vai ser pelo privado ou pelo SUS não
importa, eu preciso da cirurgia. De onde vai sair é o que menos
importa", reforça. "Eu entrei com a ação contra o plano porque eu não
posso ficar esperando. Eu posso receber um telefonema amanhã ou posso
morrer e não ser cirurgiada", ressalta.
Uma luta social
A
operação de Luiza aconteceu no início de 2017 e ela está totalmente
recuperada. Sua batalha, agora, é com a lei, que ainda não a reconhece
como a mulher que é. A
audiência definitiva demorou dois anos para ser marcada. "Enquanto
isso, na rede médica o constrangimento, vontade de largar tudo e dar um
tiro na cabeça. Você estar numa fila para fazer um exame, pedir para te
chamarem pelo nome social e não ser atendida. Chamarem por um homem e
levantar uma mulher. É muito constrangedor".
A
última audiência foi há algumas semanas e ela espera ser Luiza, do sexo
feminino, em todos os seus documentos até o fim do ano. A partir de
então, vai retomar o curso técnico em Agrimensura para trabalhar com o pai, que atua na área. "É
um jeito de trabalhar. Eu tenho de trabalhar com o meu pai porque
ninguém vai me empregar. Eu praticamente me formei, mas ainda estou
esperando meu nome de verdade sair para legitimar meu trabalho. Não
posso assinar um nome que não é meu", lamenta. Por enquanto, por viver
em uma região turística, Luiza trabalha como freelancer em bares, restaurantes e passeios turísticos.
Nesse quesito, a situação de Daniela é diferente.
"Sou uma pessoa bem sortuda e consegui a mudança do nome e do gênero,
tenho o sexo feminino na certidão de nascimento, em 2013. Eu consegui em
primeira instância e o Ministério Público não recorreu. Eu sou uma
privilegiada nesse sentido", afirma.
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Num
país em que quase 90% das mulheres transexuais são empurradas para a
prostituição, de acordo com números da Associação Nacional de Travestis e
Transexuais (Antra), Daniela também se destaca. Filha
de um pedreiro com uma dona de casa, ela buscou profissionalização já
no ensino médio, quando cursou o então técnico em Processamento de
Dados, hoje Informática. "E já no ensino médio comecei a trabalhar com
TI e não parei mais. Desde então eu segui esse rumo extraordinariamente
difícil, porque é uma área quase que totalmente dominada por homens
brancos hétero cis, gente privilegiada", resume.
Há
quase três anos ela é analista programadora da multinacional
ThoughtWorks, uma empresa de tecnologia que presa pela inclusão. Daniela
é uma das quatro pessoas transexuais da companhia no Brasil. Antes de
chegar lá, pensou em desistir da carreira. "E o problema não era só a profissão, porque uma vez transexual no Brasil você vai ser discriminada em qualquer lugar."
Caixa-pretaO processo transexualizador está disponível no SUS há quase 20 anos, mas é impossível obter números precisos sobre a demanda pelo atendimento e tempo de espera. Hoje, em todo o País, há apenas cinco hospitais que oferecem os procedimentos cirúrgicos e ambulatoriais e há outros quatro ambulatórios especializados. E, embora seja o SUS o órgão responsável por esses atendimentos, o sistema não conta com dados sobre a fila de espera nem pode medir se há um cruzamento eficiente entre a fila única nacional e as de cada um dos estados.
De acordo com Inês Gadelha, médica e chefe de gabinete da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, os hospitais credenciados têm suas próprias filas internas e normalmente o indivíduo está em mais de uma, o que não é bom, porque dá impressão de um problema ou de uma fila muito maior do que a que existe.
"A fila se forma pela baixa oferta de serviços. E por que existe uma baixa oferta? Porque os hospitais não demonstram interesse em se habilitar", afirma Inês. "Mesmo as filas de cada hospital podem ser superestimadas, porque pode ter pessoas inscritas em mais de uma fila", completa. Superestimada ou não, a realidade é que transexuais não conseguem se submeter à cirurgia.
Entre agosto de 2008 a setembro de 2017 foram realizados 428 procedimentos hospitalares e 21.935 procedimentos ambulatoriais relacionados ao processo transexualizador, incluindo as cirurgias de transgenitalização. "Os hospitais que são habilitados desde o começo para procedimentos cirúrgicos são os mesmos cinco até hoje", lembra Inês.
saiu: www.cartacapital.com.br
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