terça-feira, 26 de junho de 2018

Militante do movimento negro diz tudo que governador da Bahia precisava ouvir

Desculpa iniciar essa carta pública com a impaciência de quem não aguarda, não espera, não pode vacilar, pois nossas vidas parecem sempre receber menos valor. Peço-lhe publicamente que pare de rifar vidas negras no jogo da governabilidade, da submissão da política ao marketing, da palavra fácil sem qualquer profundidade de conteúdo, nos submetendo a duros ataques que infelizmente se tornam cotidianos contra o direito de sobrevivência frente ao projeto histórico de nossa eliminação.
Reconheço muitos dos seus esforços e do projeto que tem sido parte, e que é muito maior que mandatos, para a superação de condições de desigualdade a que vive a maioria do povo baiano, impressos na sua trajetória política, que aqui, também ouso conectar como parte do processo de formação da esquerda baiana no Partido dos Trabalhadores, que como militante a pelo menos dozes anos, tenho todas as condições legítimas de também convocar a reflexão nesse momento.
Tenho assistido, lido e refletido perplexo a cada declaração do senhor especialmente sobre segurança pública e encarceramento e não posso abdicar de assumir meu lado e expor a profunda contradição, pra dizer o mínimo, entre declarações oriundas de uma pessoa que reivindica o território negro da Liberdade na propaganda eleitoral e suas declarações absurdas (não encontro palavra melhor/pior agora) que reforçam a criminalização daquela população e território, e de tantos outros, apenas para começo de conversa, e que repetem o mantra punitivo que contamina também grande parte da esquerda partidária no Brasil.
Confesso que não acreditei que após o episódio onde a vida de jovens negros assassinados foi colocada em comparação com um jogo de futebol, e o completo absurdo da primeira tentativa de desfecho sumário do caso, poderíamos abrir algum tipo de diálogo para reparar os danos, e permitir um outro entendimento do caso, frente a sua brutalidade a que acredito, nenhum de nós poderia compactuar. Mas acontece que qualquer palavra depois desses eventos só seria ao menos uma proposta de recomeço se a dignidade daquelas pessoas e de suas famílias pudessem ser ao mínimo respeitadas, as responsabilizações atribuídas e os danos reparados, onde fossem possíveis, já que vidas foram perdidas de forma irreparável.
Defendi aqui a responsabilização, se prestou atenção, para tentar convocar um processo onde nos distanciemos da tentação fácil em reivindicar a punição como único caminho possível para conversar sobre os temas que aqui levanto. Também porque sei, leio, reconheço, que a punição, assim como a condecoração, a compaixão e a empatia são profundamente seletivas racialmente no Brasil.
Se não tenho as condições pelo senhor exigidas para construir melhores consensos nesse campo, peço ao menos que o nosso diálogo seja intermediado por outras interlocutoras que não apenas a sua equipe de marketing, de onde, respeitosamente, imagino que as suas declarações parecem vir, governador, me desculpe, em especial sobre a condição do cárcere.
Poderíamos convocar como elemento basilar da nossa conversa o respeito à vida, se me permite. E por mais que eu entenda profundamente que estou reivindicando aqui a proteção da vida de irmãs e irmãos negros, o faço porque também sou de um lugar onde cada vida é importante, e que defenderemos essa condição ainda que sequestrados de nossos territórios.
Peço que tenha uma atenção especial na produção de sofrimentos que nos é afligida. O sofrimento de mães e pais que perdem seus filhos e filhas, independentemente da situação em que aquelas estejam, deve ser respeitado, acolhido, não jogado na vala da criminalização fácil, que historicamente atravessa nossas vidas desde a infância. Esse é um pedido importante, sem o qual não teremos mais rumo nessa conversa. Que espero não seja um monólogo, ou relegado ao plano do textão, ou do tribunal. Já iniciei me prestando ao diálogo
Se o senhor governador não conhece a brutalidade do modelo de encarceramento dos corpos negros frente a um projeto histórico que nos acompanha desde o sequestro e escravização, sugiro começar por Juliana Borges, Michelle Alexander ou Deborah Small. Sugiro dar uma lida em Achille MbembeSilvio Almeida. Sugiro a dar uma olhada, a respeitar outras contribuições. Lembra que acima me propus a apresentar outras intermediadoras que não fossem apenas as minhas palavras e a sua equipe de produção.
Porque em respeito as condições de aprisionamento histórico dos nossos corpos, das nossas subjetividades, e inclusive, se o senhor não sabe, das nossas crianças, encarceradas com suas mães, o mínimo exigido ao senhor é que aceite outras contribuições caso se propõe de fato a ser parte das soluções para essas condições e não um contribuinte do seu aprofundamento.
Chacinas não são naturais. Independe da cor da pele das pessoas. Mas nessa cidade, e em muitos cantos do Brasil, as nossas mortes pretas são expostas, comemoradas, viram lucro, voto, projetos de lei, e no final das contas, num programa de rádio o governador busca confirmar o que o povo sabe que não é verdade: que aquelas vidas não têm valor porque foram criminalizadas. Nós sofremos TODAS as nossas mortes, governador, e todas as nossas ausências. Então por favor, pare de espezinhar mais.
Sugiro que dê uma lida nos resultados das audiências de custódia apenas como possibilidade de ter um pouco mais de entendimento sobre a questão do direito das pessoas presas, que tem a mínima oportunidade de voltar a ser uma pessoa na frente do juiz, e não um nome, número e endereço. Sugiro com a tranquilidade da sua capacidade de entendimento de que não tem relação alguma com “soltar bandidos” ou “flexibilizar” a lei. Para nós aqui, a lei já é dura até demais. Mas as audiências sugerem alguma dignidade, que acredito que o senhor também devesse ter em consideração, observadas suas origens.
No entanto, as audiências apenas sugerem cidadania e nós vamos brigar por ela inteira. Não porque agora nós reparamos que estamos em uma desvantagem histórica que busca desvalorizar nossas vidas. Nós acompanhamos esse projeto histórico de apagamento, violência e cárcere RESISTINDO. Ou já não mais estaríamos aqui, se não fosse a nossa organização preta, se não fossem nossas mulheres pretas conspirando
Apenas pare, governador. Reflita. Precisamos disputar as mentes das pessoas e não repetir o mais fácil e vil dos discursos que ao final produz apenas morte e sofrimento a todas e impedem o real sentido libertador de nossas trajetórias.
Dudu Ribeiro, nascido em Salvador, em 17 de maio de 1984. Negro.
saiu: ww.jornalfolhapopular.net.br

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